Bolsonaro usa vídeo com semiótica religiosa para reforçar imagem de mártir

Professores apontam estratégia de vitimização inspirada em arquétipos cristãos
Bolsonaro usa vídeo com semiótica religiosa para reforçar imagem de mártir_Portal Os 3 poderes

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No vídeo divulgado por Michelle Bolsonaro, em que o ex-presidente aparece debilitado e caminhando com dificuldade em um hospital, especialistas veem mais do que um simples registro de recuperação. Para dois professores de jornalismo, trata-se de uma estratégia deliberada de comunicação, que utiliza elementos da semiótica religiosa para transformar Bolsonaro em uma figura de martírio cristão.

Felipe Pena, jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós-doutorado pós-doutorado em Semiologia da Imagem pela Sorbonne, analisa o vídeo como um exemplo claro de guerra semiótica.

“A vitimização é uma estratégia de defesa quando você não tem defesa. Bolsonaro simula um calvário, caminha como se carregasse uma cruz”, afirma Pena.

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Segundo ele, a intenção é provocar uma identificação simbólica com a figura de Cristo, especialmente entre os apoiadores evangélicos e católicos do ex-presidente.

Estratégia simbólica e imagética

Pena compara o uso de arquétipos no vídeo à construção narrativa do filme E.T., de Steven Spielberg, lembrando que o cineasta estudou profundamente os conceitos do psicanalista Carl Jung. Para ele, o vídeo da internação hospitalar não foi feito ao acaso.

“Essas imagens são muito bem construídas. Michelle impediu visitas de parlamentares para não gerar registros que destoassem da imagem divulgada: a do calvário cristão. É tudo parte de uma encenação semiótica”, ressalta.

Segundo o professor, essa construção simbólica surge como uma reação à fragilidade jurídica de Bolsonaro.

“As provas contra ele no processo de tentativa de golpe são contundentes. Como não há defesa, ele se posiciona como mártir.”

Comunicação visual com fundo religioso

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A análise é reforçada pelo professor Roberto Mancuzo, mestre em Comunicação Visual e docente na Faculdade de Comunicação Social de Presidente Prudente. Para ele, o vídeo foi estrategicamente divulgado durante a Semana Santa, coincidindo com datas sagradas para os cristãos.

“Bolsonaro tenta se mostrar como um homem do bem que sofre pela humanidade. A cena do lava-pés com Michelle é simbólica demais para ser coincidência. Há um roteiro religioso por trás”, avalia Mancuzo.

Ele alerta que, embora tais imagens toquem o emocional da população, é essencial manter o senso crítico.

“Antes de cultuá-lo como salvador, é bom lembrar que ele é réu em ações que tratam de crimes graves como organização criminosa e tentativa de golpe de Estado.”

Bolsonaro e a construção do “messias político”

A associação do ex-presidente à figura de um salvador não é inédita. Desde a campanha de 2018, ele e seus apoiadores utilizam símbolos religiosos para fortalecer a imagem de “escolhido”. A própria base bolsonarista o chama frequentemente de “mito” e, em muitos discursos, ele é apresentado como alguém “enviado por Deus”.

Esse tipo de construção narrativa se ancora em elementos profundamente enraizados no inconsciente coletivo, explica Felipe Pena.

“Mesmo sem conhecer Jung, Bolsonaro reproduz arquétipos do Cristo sofredor, criando um elo simbólico com sua base. E isso não é espontâneo.”

Reação à crise jurídica e política

A escolha por essa narrativa acontece no momento em que o ex-presidente enfrenta o avanço de investigações da Polícia Federal e ações na Justiça, como o inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado e a suspeita de venda ilegal de joias recebidas enquanto chefe de Estado.

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República concluiu uma peça acusatória que, segundo fontes do Ministério Público, pode levar Bolsonaro à prisão. Diante disso, a estratégia de comunicação se volta para uma vitimização simbólica, com forte carga religiosa.

O papel de Michelle Bolsonaro na narrativa

Michelle tem assumido um papel central nessa construção. Ao divulgar o vídeo e controlar os registros divulgados, ela atua como curadora da imagem pública do marido. Segundo Pena, a ex-primeira-dama entende que cada detalhe visual pode reforçar ou fragilizar a narrativa construída.

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O gesto do lava-pés entre o casal, amplamente compartilhado nas redes, remete diretamente ao episódio bíblico da Última Ceia. Na tradição cristã, o ato simboliza humildade, serviço e redenção, características que a imagem tenta associar ao ex-presidente.

Desafios à leitura crítica da imagem

Para os especialistas, a principal preocupação é que parte do público não percebe a intenção simbólica das imagens e consome o conteúdo como se fosse genuíno, sem filtragem crítica.

Mancuzo lembra que o Brasil é um país de maioria cristã e que tais símbolos têm alto poder de mobilização emocional.

“É uma estratégia pensada para tocar corações antes de convencer mentes.”

Ele conclui que, diante de acusações judiciais sérias, como tentativa de golpe e envolvimento com milícias digitais, o ex-presidente aposta em uma narrativa religiosa para blindar sua imagem e manter sua base mobilizada.

“A dúvida é se essa estratégia ainda tem o mesmo poder de convencimento agora, com Bolsonaro réu e acuado judicialmente.”

Imagem como arma política

A guerra simbólica apontada pelos professores integra um cenário mais amplo da comunicação política contemporânea, em que a imagem tem peso igual ou superior ao discurso racional.

Na visão dos analistas, a tentativa de evocar arquétipos cristãos não é apenas uma estratégia de defesa, mas um movimento tático para manter viva a figura do “messias político”.

Como mostram as análises, em tempos de crise jurídica, a batalha pelo imaginário coletivo se intensifica – e os símbolos religiosos se tornam uma ferramenta central na luta pelo apoio popular.

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